May 19, 2016

#precisamosfalarsobreafau

Na semana passada vi uma movimentação das alunas e alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP São Paulo usando a hashtag #nãoénormal. Após a campanha da Coletiva ENEFAR (Coletiva da Executiva Nacional dos Estudantes de Farmácia) da UFPI Usando a hashtag “não é frescura” (#NAOEFRESCURA) que teve por objetivo mostrar que algumas situações psicológicas vivenciadas pelos estudantes não devem ser banalizadas, como o fato de um discente não conseguir fazer uma prova por causa de uma crise de ansiedade ou de pânico, as alunas e alunos da arquitetura e urbanismo se reconheceram e começaram a se articular.

Nos cartazes espelhados pela faculdade falavam sobre as angústias que sentem diariamente e que estão associadas ao curso, às relações com professores e colegas, ao tempo, ao dinheiro... Associada à hashtag #nãoénormal veio também #precisamosfalarsobreafau. E precisamos mesmo, especialmente porque esse ar de normalidade no abuso em sala de aula é depois carregado fora da academia, nas nossas contratações profissionais. Se não falarmos sobre isso dentro da escola, na vida profissional temos ainda menos espaço.


Mas afinal, qual é o conteúdo desses cartazes e dessa campanha?

São relatos sobre situações extremas que vivem ao longo do curso e que não deveriam ser tratadas como normal.  Na página que os alunos montaram no facebook estão reunidos até agora 114 relatos de alunos sobre situações de constrangimento, de violência psicológica, de privação que passam no período da faculdade. São frases como "Não ter vontade de ir para a faculdade não é normal", "Não ter tempo para projetos pessoais não é normal", "o professor te fazer chorar não é normal", "ter medo de se pronunciar em sala de aula não é normal", "ter crises de depressão por estar sobrecarregado não é normal", "sentir culpa por dormir mais do que 4 horas não é normal", "sentir culpa por estar usando o horário de almoço para almoçar não é normal"... e por aí vai. 

Não é difícil entender que não é normal mesmo, mas na faculdade de arquitetura tratamos como se fosse, e depois repetimos o mesmo comportamento na vida profissional, tratamos como brincadeira as frases "arquiteto não dorme" e "arquiteto não se aposenta, morre", mas elas são na verdade uma grande violência sobre todos nós.

Na USP, na UFJF, na UFBA e em tantas outras faculdades estudantes se organizaram e colocaram pra fora suas angústias nos cartazes pelos corredores. Neste terça feira os corredores da nossa faculdade foram cobertos com cartazes com a hashtag #nãoénormal. Desta vez não estou na posição dos estudantes, mas de professora, provavelmente alvo das críticas das alunas e alunos.
Não vimos nos corredores a articulação de estudantes para montar a campanha, mas vimos suas postagens no Facebook reconhecendo situações e sentimentos em comum, vimos em sala de aula seu choro e a ansiedade em semanas de entregas de projetos, vimos sua saúde afetada pela pressão, a preocupação quando seus filhos estão precisando de cuidados e eles tem que estar em sala. Não vimos sua articulação mas sabemos que eles se reconhecem na campanha.

Eu não vi os cartazes nas paredes, naquela noite eu não tinha aulas no mesmo prédio que eles. Só fui saber ontem o que tinham feito. Mais tarde fiquei sabendo que algum aluno achou que tinha dedo meu na história. Não tinha, mas fico feliz em ser reconhecida como uma possível articuladora de uma campanha como essas. Mas, se tivesse participado, teria feito mais barulho, teria sugerido uma convocação pública, um debate maior.

Apesar de os cartazes terem sido removidos, acho que surtiram algum efeito. O mais imediato foi trazer a discussão para a sala dos professores, foi nos fazer vestir a carapuça que nos servia. Ontem discutimos sobre essa normalidade das coisas que não são normais, comparamos nosso período como estudantes e os professores que somos hoje.
Será que conseguimos ser professoras e professores que despertam curiosidade nos alunos, que despertam desejo em conhecer mais, que despertam tesão pela arquitetura e pelo urbanismo, ou despertamos medo, angústia, desinteresse...

Tomamos um belo tapa na cara, moçada.

Espero que possamos continuar esse debate e mudar a cara do nosso curso, mas está também na mão de vocês. Mantenham-se organizados e vamos em frente, o colegiado de professores e a coordenação do curso estão abertos.




ps.: Fiquei feliz também em ver nossos alunos, há tanto tempo sem centro acadêmico, sem organização interna, interagindo com campanhas dos alunos de outras instituições.


Apr 11, 2016

alucinações do último ato

Completavam-se exatos 18 anos que havia comprado o terreninho no Morumbi, quando decidiu mudar-se pra lá definitivamente. Sua mãe e as irmãs já ocupavam os outros quartos. O pai estava em casa separada, mas pertinho dali.

Avisou ao irmão caçula no dia anterior. 
- Pra minha mãezinha já telegrafei, E já me cansei de tanto sofrer, Nesta madrugada estarei de partida, Pra terra querida que me viu nascer.
Pegou o trem no dia seguinte cantando com Judy Garland.




Acenando pela janelinha do trem conseguiu ver a confusão na estação que sua partida causava. Não que fosse novidade sua partida iminente, mas era difícil para os que estavam na plataforma vê-lo partir.

Escreveu seu último ato como escrevia suas peças e os mais recentes contos, com muito humor e aquela pitada de sarcasmo, humor negro e amarga honestidade (como disse um crítico sobre sua obra). 
Ria ao ver os amigos queridos e o irmão cuidando das burocracias da sua partida. 
Mas com que roupa ele vai? Essa mala é a que ele escolheria? Ele deixou alguma coisa preparada, disse como gostaria que acenássemos da estação? Alguma direção, coreografia? Como assim, ele era diretor e não deixou instruções para os atores da peça? 

O último ato, incluía gângsters em cena, a máfia das flores como era conhecida na cidade. Atiravam para todo lado, ameaçavam de sequestro. Horas de negociação até a liberação do mocinho na alfândega. Vocês querem vê-lo antes da partida? Ele vai cumprimentar a todos que forem se despedir? Temos maquiadores, iluminadores, figurinistas, cenógrafos, todos especializados... tem certeza que não vão querer?
sim, certeza, apenas um aceno de longe, sem janelinha. Como poderia ele em cena sem sua batuta.

Levou consigo lembranças de seus gatos, como um faraó egípcio. Tinha o pêlo dos bichanos nas vestes, uma pequena cerâmica costurada à lá Artur Bispo do Rosário em seu bolso. Não permitiram que levasse líquidos, sabe como é, se não deixam no avião também não deixam no trem. Os vasilhames hoje em dia são perigosos...
Quando chegou na estação para sua despedida viu os amigos carinhosamente preparando o cenário, as luzes, as flores. Tanto amor ali, tanto carinho e tanta saudade. Só foi embora porque estava certo do reencontro um dia.

Na estação, na despedida, muitos se amontoavam. Mas ele já estava dentro do vagão e não ia mais fazer uma aparição. Deve ter se divertido ouvindo às especulações do motivo de sua ausência na própria despedida. 
Ele estava lá, esteve com todos e provavelmente acumulava personagens para as próximas histórias. Talvez um romance? Se bem que um volume com vários contos estava pronto ali à sua volta.

O irmão mais velho em certo momento desabafou irritado "ele furou a fila!"
As vozes que cantavam Amazing Grace preenchiam a plataforma da estação e ovacionado, como devem ser os artistas, ele partiu para uma caminhada até a colina onde fica seu terreninho. 
Tem vista, árvores, e aos domingos tem um pancadão pra animar a tarde. No momento da despedida até rojões soltaram.

E agora ele mora na colina, e canta e ri, e nós ficamos aqui na saudade.