Jun 5, 2020

da insuficiência de humanidade aguda, ou como o racismo mata crianças pretas no Brasil

Ainda estamos oficialmente em isolamento social, a situação do contágio com o vírus da Covid-19 no Brasil está completamente descontrolada.
Os dados oficiais dão conta de que cerca de 1 pessoa morre a cada minuto no país em consequência da doença.
Mas tem gente que não acha isso relevante.
Nem preocupente.
Mas não é sobre isso que queria falar hoje, ou é. De certa maneira é.
As notícias desta semana são assustadoras em todos os sentidos, mas de longe a mais chocante e triste e devastadora é a da morte do menino Miguel.
Miguel não morreu de insuficiência respitarória aguda pelo Covid, ele morreu de insuficiência de humanidade aguda que acomete a ex-patroa de sua mãe.
A mãe do Miguel, a Mirtes, é trabalhadora doméstica lá em Recife. Trabalhava para uma família abastada, que mora numa dessas torres que fodem com a paisagem da cidade.
A mãe do Miguel não foi dispensada do trabalho para se proteger com sua família. O Miguel, com 5 anos, não tinha escola pra ir enquanto a mãe trabalhava, porque as escolas estão todas fechadas (como deria ser).
Nesse dia, não tinha mais ninguém em casa para cuidar do Miguel, e a Mirtes precisou levá-lo com ela ao trabalho.
Não é que ela trabalhasse num lugar perigoso para crianças, uma fábrica com produtos químicos, caldeiras, prensas ou coisa do gênero. Ela trabalhava na casa de uma família, cuidando também de outras crianças. Não era perigoso levar o Miguel.
Se bem que era...
Alguns causos por aí contam que a Mirtes, o Miguel e a vó dele tiveram Covid-19, porque nesse vai-e-vem do trabalho diário, em algum lugar ela se contaminou. Mas não investiguei, nem vou, porque é bem provável que seja verdade. Não vem ao caso agora.
A Mirtes e o Miguel são negros, e isso é bem importante nessa narrativa.
Digo o porquê: a maioria das trabalhadoras domésticas no Brasil são negras, e trabalham na casa de famílias brancas. Essa relação abusiva de trabalho vem desde os tempos que o povo negro era escravizado no Brasil. Essa é a relação de trabalho a que muitas mulheres negras são submetidas. É tão abusiva que a patroa não liberou a trabalhadora de suas atividades mesmo com o risco de contaminação por uma doença tão cruel, não continuaria pagando o salário da funcionária para ela "ficar em casa".
Acho que é aqui que entra a história de que estou sim falando da pandemia: São essas as pessoas que estão subordinadas a patrões que "flexibilizam" as normas do isolamento, e que "precisam trabalhar" para não passar fome. São mulheres, e são mulheres negras na maioria das vezes, que sustentam a família toda com esse trabalho, e que estão sujeitas ao abuso dos empregadores em situações como essa.
Mas o Miguel naquele dia foi com a mãe para o trabalho, e brincava com as outras crianças da casa. A mãe do Miguel precisou descer para levar o cachorro para passear (cachorro em apartamento precisa sair um pouquinho pra fazer seu xixizinho e cocozinho lá na calçada, fora do apartamento, algumas vezes por dia). O Miguel ficou no apartamento, com outras crianças e com pelo menos mais 2 adultos: a dona do apartamento, mãe das outras crianças e patroa da sua mãe, e uma moça que prestava serviço de manicure (que também não foi dispensada do trabalho com seus recebimentos mantidos).
Mas o Miguel tinha 5 anos, e como uma criança de 5 anos, ficou com aquele apertinho no coração de quando a mãe não está no campo de visão, e chorou.
Na minha santa inocência, imagino que qualquer pessoa ao ver uma criança de 5 anos chorar, ainda mais sabendo porque ela está chorando, senta com a criança para consolar. Conta uma história, conversa, prepara alguma coisa pra comer, faz o tempo passar até que a mãe chegue e a criança se acalme com sua volta.
Mas parece que na vida real nem sempre é assim, e às vezes aquelas figuras tenebrosas dos contos de fadas existem em carne e osso.
O que fez a mulher ao ver o menino chorar: levou o pequeno até o elevador do prédio, botou lá dentro e apertou um botão qualquer. Como um amigo escreveu "apertou o botão 'pra longe de mim'".
Mas em todo elevador tem aquela plaquinha de que crianças não podem andar desacompanhadas de um adulto! Todos! Todo mundo que mora em prédio já leu essa cláusula mais de uma vez.
Por que uma criança não pode andar sozinha de elevador?
Porque elas não entendem como funciona, não sabem ver onde o elevador parou, que andar, pra onde ir, como funcionam os botões, como chamar ajuda se algo der errado. O Miguel tinha 5 anos.
Mas se ela sabia que ele era criança, e que criança não sabe e não pode andar de elevador sozinha, por que essa mulhar botou o menino lá dentro?
O Miguel tinha 5 anos.
O que ela imaginou que ia acontecer?
O Miguel tinha 5 anos.
Provavelmente ela não imaginou que ia acontecer exatamente o que aconteceu, mas certamente dava pra imaginar que algo bem sério aconteceria.
O Miguel tinha 5 anos.
Mas por que essa mulhar botou o menino lá dentro?
Por causa da  insuficência de humanidade aguda que a acomete.
E por causa do racismo que lhe corre nas veias.
Eu ainda não contei que ela é branca, né? Pois é, ela é branca. E como todos nós brancos no Brasil (sim, TODOS nós), o racismo nos é ensinado desde cedo, e se a gente não para para percebê-lo, e tentar desconstruir seus efeitos nas nossas ações, ele fica ali presente em todas as nossas atitudes diante de uma pessoa negra sem que a gente se sinta mal por isso.
O Miguel tinha 5 anos.
Se a criança não fosse o filho da empregada, talvez ela dona branca tivesse descido com ele para procurar a mãe, interfonado ao porteiro para chamar a mulher na rua, ligado para a mãe do menino ir buscá-lo.
Ela teria colocado os proprios filhos pequenos num elevador sem supervisão? Não acredito nessa hipótese.
Mas aqui a gente volta para a questão da construção do racismo no Brasil.
A criança negra no Brasil não é tão criança quanto a criança branca.
O menino de 5 anos negro é visto como um pequeno adulto, enquanto o menino de 5 anos branco é uma criança indefesa (como toda criança de 5 anos deveria ser vista!).
O menino de 5 anos pode ser colocado num elevador sozinho, porque ele certamente saberá o que fazer!
Assim como o menino negro de 14 anos é um "menor", enquanto o menino branco de 14 anos é um adolescente, e cada um deles carrega o peso e a leveza dessas palavras com ele.
O Miguel tinha 5 anos.
O Miguel saiu  no 9º andar, depois de apertar todos os botões do elevador.
O Miguel caiu do 9º andar.
O Miguel morreu de racismo aos 5 anos.

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Pra pensar um pouco sobre essa construção do racismo no Brasil sugiro a leitura de "As Ilusões da Liberdade: a escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil", da Mariza Corrêa, e o "Espetáculo das raças: Cientistas, Instituições e questão racial no Brasil 1870-1930", da Lilia Moritz Acharcz.
Pra tentar ser menos racista, pra reconhecer o próprio racismo não pode faltar na leitura o "Pequeno manual Antirracista" da Djamila Ribeiro

Apr 23, 2020

Algum dia da pandemia. Ou o pior roteiro de filme da sessão da tarde de todos os tempos

Parece que eu só volto por aqui em momento de crise. Quando criei o blog não era assim, mas acho que agora é isso mesmo... 

Estamos aqui em abril de 2020, isolados em casa, em meio à pandemia de Covid-19. 
Na presidência do Brasil está o tal capitão contra o qual marchamos em 2018 (última vez que escrevi no blog). A situação é muito triste.
Às vezes oscilo entre tristeza e raiva, um pouco de melancolia e depois fico esperançosa, aliviada em alguns momentos. Mas a situação está difícil.

Na TV, entre os absurdos que são noticiados todos os dias, acho muito difícil entender que algo carinhosamente apelidado de Gabinete do Ódio ainda não tenha sido desintegrado.
Um grupo com poder de decisão sobre a vida e a morte (ou sobre matérias legislativas que podem auxiliar ou dificultar a vida da população) não pode ser chamado (com razão) de Gabinete do Ódio e continuar existindo.
Meu problema não é com o apelido dado, entendam, é com o fato de que o apelido cabe, o apelido foi assumido por eles, eles se reconhecem nele.
Não pode! Não é aceitável!

Ah, mas vai dizer que você não sente um odiozinho de vez em quando?
Claro que sinto, especialmente quando vejo umas coisas dessas, mas é inadmissível que o ódio ao outro seja institucionalizado, reconhecido e aceito. Que tenha um gabinete e que alguém te aponte o caminho.
É de cair o cu da bunda!
Ah, e claro, Gabinete do Ódio é o gabinete do filho do presidente.

Por sinal, acho surreal essa história de filho do presidente... sabe tipo monarquia, família real de filme B, que prepara os herdeiros, que eles tem que acompanhar algumas reuniões para depois assumir o cargo? Mas não estamos numa monarquia, e se estivéssemos, essa não seria a "família real"... é golpe ditatorial mesmo... o filho do chefe cuida das contas das mídias sociais. Não é uma assessoria de imprensa, é o zero qualquer coisa. S-U-R-R-E-A-L!

Neste exato momento estamos aqui vendo o mundo todo lutando pela vida da população, correndo com medidas econômicas de auxílio aos mais vulneráveis. Cidades, estados, países fechados há meses. Centenas de milhares de mortos no mundo todo. E na maioria dos lugares a epidemia está ascendente, está crescendo, inclusive por aqui.
O Brasil vai na contramão das medidas sanitárias. 
O presidente briga com os governadores, discorda do ministro da saúde (a quem ele demite no meio do furacão), discorda da OMS, dos médicos e pesquisadores da área de saúde.
Uma meia dúzia de semi-endinheirados sai às ruas com seus carros tamanho GG pedindo a abertura do comércio além dos serviços essenciais. Gritam que as pessoas pobres morrerão de fome.
Mas não gritam com a mesma força para pedir que as medidas de auxílio econômico aos mais vulneráveis sejam maiores e a distribuição mais eficiente.
Querem que as pessoas voltem ao trabalho, porque sem a autorização dos estados e municípios não podem chamar seus empregados domésticos de volta, não podem voltar ao seu consumo diário de itens supérfluos. 
Não existe preocupação com a economia. Existe é preocupação com a manutenção do próprio privilégio, mas não vamos admitir isso nunca, porque é feio. Então diremos que é para a economia não entrar em colapso.

Ô anjos, não tem mais jeito, a economia mundial entrará em colapso, não é mais possível reverter. O que dá pra diminuir um pouco é o número de mortes.

Acho ruim falar número de mortos, é muito impessoal. Parece que quem morreu não era gente, não era da família de alguém, não era mãe, pai, vô, vó, tio, tia, filho, filha, BFF, ou o grande amor da vida. 
É bem mais triste pensar assim, mas é mais real.
Escrevo agora com aquele nó na garganta que a gente sente ao segurar o choro.
Números não impressionam. Gráficos não causam dor se não se souber lê-los.
E hoje a notícia é de que além do sistema de saúde chegar no seu limite, da falta de equipamentos de proteção para os profissionais da saúde, também os serviços funerários chegaram ao limite. Não dá mais para abrir valas individualmente e os enterros serão coletivos. Tem fila nos cemitérios, mas não tem velório.
Em Manaus o número de mortos em um dia é 3 vezes maior do que se morria normalmente. Na conta do jornalista, se o número de mortes no trânsito e os assassinatos diminuíram com o isolamento social, então, o número de mortos infectados pelo vírus é mais do que 2 vezes o número médio diário de mortos na cidade. Mas não temos testes suficientes para comprovar esse volume. A subnotificação é enorme.
Não temos informação, só podemos ler os dados e desconfiar um pouco.

Aí, como se não bastasse a loucura geral em que nos encontramos, o presidente comprou briga também com o ministro da justiça, aquele marreco golpista que era juiz e virou "superministro". O noticiário do meio da tarde parece noticiário dos alunos da 2ª série na cobertura do cabo de guerra da hora do recreio.
Não creio!

Em tempo, só pra deixar registrado, não há da minha parte apoio a nenhum ministro deste governo. Nenhum, em momento algum. Mas, contudo, todavia, entretanto,  é bem imprudente demitir um ministro de saúde que minimamente sabia o que estava fazendo, pra colocar outro no lugar no meio de uma crise sanitária de níveis apocalípticos. 

Fico imaginando o presidente felizão da vida pensando como a pandemia veio a calhar em sua necropolítica. Tudo em seu governo apontava para a destruição do estado de bem estar social, dos sistemas públicos de saúde, educação, previdência, distribuição de renda... Aí vem um vírus com a capacidade de eliminar 10% da população. Não pode barrar o vírus. Ele faz parte da solução desse governo: deixar morrer os mais vulneráveis.
Mas... isso é muito cruel! Como você pode pensar isso?
Porque antes era cruel também, mas era mais lento e a gente conseguia fazer de conta que não viu...

Sep 17, 2018

dos acontecimentos políticos nas eleições presidenciais de 2018


As amigas certamente sabem, os amigos devem ter visto por aí, mas no sábado à tarde (15/09) o grupo no Facebook Mulheres Unidas Contra Bolsonaro (MUCB) foi hackeado, invadido e teve o nome alterado para demonstrar apoio ao crápula.

Se você não entendeu bem o que isso significa e está achando que é só brincadeira de internet, vou tentar ilustrar aqui: foi como se alguém tivesse invadido a minha casa e colocado bandeiras de apoio ao coisa-ruim nas minhas janelas.

Alguém (um homem apoiador do coisa-ruim) entrou no grupo, no qual 2.400.000 mulheres estavam reunidas e se mobilizando contra a candidatura de alguém que nos oferece perigo, mudou o nome do grupo e saiu por aí dizendo que o grupo era de apoio e que era mentira nossa reunião. Usaram nossa imagem, nossos perfis, postaram por aí dizendo que na verdade era uma organização de apoio.

Deu pra entender o tamanho da violência que sofremos neste final de semana?

Saí de casa no sábado à tarde dentro de um grupo contra a peste e voltei pra casa com notificações de um grupo a favor.

Foi uma violação gigantesca, foi uma tentativa torpe de nos calar e doeu profundamente.

(mas não nos calamos, não nos calaremos e estamos mais articuladas ainda)

Eu estava no grupo desde que ele tinha 500.000 integrantes, quando fui convidada por uma amiga, e o vi crescer até os 2.400.000 antes do sequestro.

Ontem eu não conseguia fazer outra coisa que não fosse acompanhar a atualização dos acontecimentos, a recuperada do nosso grupo, a nova invasão de perfis de reais ou não tentando tumultuar e invalidar nossa articulação. E a energia mental foi sendo minada.

Vou explicar uma regrinha de etiqueta: se você é convidado a participar de um grupo para o qual você não concorda com o posicionamento, você educadamente declina o convite. Por exemplo, se você é apoiadora do coisa-ruim, e é convidada por uma amiga a entrar no grupo CONTRA o coisa-ruim, você avisa a amiga "olha, fulana, agradeço por ter lembrado de mim, mas na verdade, discordo do teu posicionamento e prefiro não entrar no grupo", aí você vai na configuração e clica em "sair do grupo". Melhor do que entrar e tentar atrapalhar a conversa que tua amiga tá tendo com outras pessoas que pensam como ela. E você, pra não se sentir sozinha, se associa aos teu. Olha que fácil.

Outro exemplo: você é homem, se reconhece como homem, se apresenta como homem e as pessoas de reconhecem como homem, e você sem querer recebe um convite de uma amiga para integrar um grupo "Mulheres Unidas Contra Bolsonaro". Pô, que legal, as mulheres estão se reunindo contra o coisa-ruim, quero ver isso de perto. Veja de perto, mas de fora, apoie o movimento, organize-se com outros homens, mas decline o convite para esse grupo, este é para MULHERES, todas elas, contanto que sejam MULHERES.

E claro, se você for homem e não estiver de acordo com a temática do grupo, simplesmente saia. Teu lugar não é aqui. É feio, muito feio o que aconteceu.

Não, não é brincadeira de criança. É violência, violação do nosso direito de associação. É grave. É censura. É crime.

Aí ontem à noite, pra tentar relaxar, mudar de assunto e me preparar para a semana, aproveitei o sinal aberto da Paramount na operadora de TV à cabo e assisti aos três primeiros episódios de "The Handmaid's Tale - O Conto da Aia".

Talvez não tenha sido a ideia mais brilhante que tive nos últimos tempos...

Se você ainda não assistiu ao seriado, ou leu o romance de 1985 da Margaret Atwood, sugiro que pare tudo e faça agora.

A resenha do livro de Atwood, infelizmente, se parece demais com a realidade, ou com o medo que sinto neste momento.

"O romance distópico O conto da aia, de Margaret Atwood, se passa num futuro muito próximo e tem como cenário uma república onde não existem mais jornais, revistas, livros nem filmes. As universidades foram extintas. Também já não há advogados, porque ninguém tem direito a defesa. Os cidadãos considerados criminosos são fuzilados e pendurados mortos no Muro, em praça pública, para servir de exemplo enquanto seus corpos apodrecem à vista de todos. Para merecer esse destino, não é preciso fazer muita coisa – basta, por exemplo, cantar qualquer canção que contenha palavras proibidas pelo regime, como “liberdade”. Nesse Estado teocrático e totalitário, as mulheres são as vítimas preferenciais, anuladas por uma opressão sem precedentes."

Depois disso precisei entrar um pouquinho no Instagram, na aba de fotos de filhotes de cachorros para conseguir pegar no sono.

Jul 26, 2017

dos seriados de TV


Às vezes a gente assiste alguma coisa na TV que nos toca profundamente, e não estávamos preparados pra isso. (spoiler alert)

Começamos a assitir ao seriado da Netflix "Friends From College". A sinopse mínima falava pouco do clima do seriado: Um grupo de amigos que se conheceram na faculdade, em Harvard, compartilha os sucessos – e fracassos – da vida aos 40 e poucos anos.

Bom, o seriado fala mais dos fracassos, em todos os sentidos, do que dos sucessos. Ele tenta ser bem humorado, mas o tom cômico às vezes incomoda um pouco, ainda mais quando rola aquela identificação...

E claro que foi isso que aconteceu...

Assistir aos epoisódios 4 e 5 foi particularmente difícil.

Acompanhar a Lisa (Cobie Smulders) e o Ethan (Keegan-Michael Key) passando pelo processo da FIV foi relembrar cada uma das cerca de 90 injeções de hormônios que tomei ao longo das 3 tentativas que fizemos. Foi também refazer o cálculo do rombo financeiro que essas tentativas trouxeram consigo.

Me reconheci nas mudanças de humor da personagem ao longo do ciclo antes da punção ovariana, nos ematomas doloridos na barriga e na incapacidade de encontrar um lugar novo sem furos para injeções finais. 

No meu caso achei mais fácil eu mesma aplicar, muita confusão duas pessoas pra uma injeçãozinha tão pequena. E depois da dica da enfermeira sobre colocar o ar na ampola antes de colocar o liquido para dissolver o remédio, tudo ficou mais fácil. Mas assitindo ao episódio, fiquei muito irritada com aquele marido fazendo o maior teatro pra aplicar uma subcutânea...

Achei até tranquilo que tivessem que aplicar a última injeção, aquela com hora marcada, no banheiro da casa no meio da festa.  Nas nossa três tentativas tive que usar o banheiro da universidade no intervalo da aula. Numa das vezes estava aplicando prova no dia.

Mas certamente o mais difícil foi acompanhar o sofrimento dela com a perda do bebê. Que é uma coisa muito estranha na FIV, porque não é um bebê, é ainda um amontoado de células, mas a gente viu no ultrassom o médico colocar esse amontoado de células lá dentro do útero. Ele colocou bem aconchegado naquele endométrio grosso, acolchoado de sangue quentinho, preparado por dias só pra receber esse amontoado de células...

E o amontoado de células tinha uma lista de nomes esperando por ele ou por ela.

E a medicação fez a mama crescer, ficar dolorida, o corpo reter mais líquido... todos os sinais da gravidez estavam lá, menos ela.

A ficava pensando em quantas vezes os amontoados de célula simplesmente não se prenderam ao endométrio, e a menstruação desceu na data prevista, e ninguém nem percebeu que ele tinha passado por lá. Mas na fertilização in-vitro você sabe que ele estava lá, e fica se perguntando porque ele não gostou do quarto que você preparou com tanto carinho. Existe mesmo uma dor muito grande da perda de um bebê, não é a mesma coisa que o resultado do teste de farmácia.

Era o filho que você não teve a chance de ver crescer, e é bem complicado de lidar... 
Mas voltando ao seriado, a Cobie Smulders consegue trazer todas essas contradições na Lisa, como ela trouxe também na Robin Scherbatsky, quando a personagem descobre que não poderá gerar filhos.


May 19, 2016

#precisamosfalarsobreafau

Na semana passada vi uma movimentação das alunas e alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP São Paulo usando a hashtag #nãoénormal. Após a campanha da Coletiva ENEFAR (Coletiva da Executiva Nacional dos Estudantes de Farmácia) da UFPI Usando a hashtag “não é frescura” (#NAOEFRESCURA) que teve por objetivo mostrar que algumas situações psicológicas vivenciadas pelos estudantes não devem ser banalizadas, como o fato de um discente não conseguir fazer uma prova por causa de uma crise de ansiedade ou de pânico, as alunas e alunos da arquitetura e urbanismo se reconheceram e começaram a se articular.

Nos cartazes espelhados pela faculdade falavam sobre as angústias que sentem diariamente e que estão associadas ao curso, às relações com professores e colegas, ao tempo, ao dinheiro... Associada à hashtag #nãoénormal veio também #precisamosfalarsobreafau. E precisamos mesmo, especialmente porque esse ar de normalidade no abuso em sala de aula é depois carregado fora da academia, nas nossas contratações profissionais. Se não falarmos sobre isso dentro da escola, na vida profissional temos ainda menos espaço.


Mas afinal, qual é o conteúdo desses cartazes e dessa campanha?

São relatos sobre situações extremas que vivem ao longo do curso e que não deveriam ser tratadas como normal.  Na página que os alunos montaram no facebook estão reunidos até agora 114 relatos de alunos sobre situações de constrangimento, de violência psicológica, de privação que passam no período da faculdade. São frases como "Não ter vontade de ir para a faculdade não é normal", "Não ter tempo para projetos pessoais não é normal", "o professor te fazer chorar não é normal", "ter medo de se pronunciar em sala de aula não é normal", "ter crises de depressão por estar sobrecarregado não é normal", "sentir culpa por dormir mais do que 4 horas não é normal", "sentir culpa por estar usando o horário de almoço para almoçar não é normal"... e por aí vai. 

Não é difícil entender que não é normal mesmo, mas na faculdade de arquitetura tratamos como se fosse, e depois repetimos o mesmo comportamento na vida profissional, tratamos como brincadeira as frases "arquiteto não dorme" e "arquiteto não se aposenta, morre", mas elas são na verdade uma grande violência sobre todos nós.

Na USP, na UFJF, na UFBA e em tantas outras faculdades estudantes se organizaram e colocaram pra fora suas angústias nos cartazes pelos corredores. Neste terça feira os corredores da nossa faculdade foram cobertos com cartazes com a hashtag #nãoénormal. Desta vez não estou na posição dos estudantes, mas de professora, provavelmente alvo das críticas das alunas e alunos.
Não vimos nos corredores a articulação de estudantes para montar a campanha, mas vimos suas postagens no Facebook reconhecendo situações e sentimentos em comum, vimos em sala de aula seu choro e a ansiedade em semanas de entregas de projetos, vimos sua saúde afetada pela pressão, a preocupação quando seus filhos estão precisando de cuidados e eles tem que estar em sala. Não vimos sua articulação mas sabemos que eles se reconhecem na campanha.

Eu não vi os cartazes nas paredes, naquela noite eu não tinha aulas no mesmo prédio que eles. Só fui saber ontem o que tinham feito. Mais tarde fiquei sabendo que algum aluno achou que tinha dedo meu na história. Não tinha, mas fico feliz em ser reconhecida como uma possível articuladora de uma campanha como essas. Mas, se tivesse participado, teria feito mais barulho, teria sugerido uma convocação pública, um debate maior.

Apesar de os cartazes terem sido removidos, acho que surtiram algum efeito. O mais imediato foi trazer a discussão para a sala dos professores, foi nos fazer vestir a carapuça que nos servia. Ontem discutimos sobre essa normalidade das coisas que não são normais, comparamos nosso período como estudantes e os professores que somos hoje.
Será que conseguimos ser professoras e professores que despertam curiosidade nos alunos, que despertam desejo em conhecer mais, que despertam tesão pela arquitetura e pelo urbanismo, ou despertamos medo, angústia, desinteresse...

Tomamos um belo tapa na cara, moçada.

Espero que possamos continuar esse debate e mudar a cara do nosso curso, mas está também na mão de vocês. Mantenham-se organizados e vamos em frente, o colegiado de professores e a coordenação do curso estão abertos.




ps.: Fiquei feliz também em ver nossos alunos, há tanto tempo sem centro acadêmico, sem organização interna, interagindo com campanhas dos alunos de outras instituições.


Apr 11, 2016

alucinações do último ato

Completavam-se exatos 18 anos que havia comprado o terreninho no Morumbi, quando decidiu mudar-se pra lá definitivamente. Sua mãe e as irmãs já ocupavam os outros quartos. O pai estava em casa separada, mas pertinho dali.

Avisou ao irmão caçula no dia anterior. 
- Pra minha mãezinha já telegrafei, E já me cansei de tanto sofrer, Nesta madrugada estarei de partida, Pra terra querida que me viu nascer.
Pegou o trem no dia seguinte cantando com Judy Garland.




Acenando pela janelinha do trem conseguiu ver a confusão na estação que sua partida causava. Não que fosse novidade sua partida iminente, mas era difícil para os que estavam na plataforma vê-lo partir.

Escreveu seu último ato como escrevia suas peças e os mais recentes contos, com muito humor e aquela pitada de sarcasmo, humor negro e amarga honestidade (como disse um crítico sobre sua obra). 
Ria ao ver os amigos queridos e o irmão cuidando das burocracias da sua partida. 
Mas com que roupa ele vai? Essa mala é a que ele escolheria? Ele deixou alguma coisa preparada, disse como gostaria que acenássemos da estação? Alguma direção, coreografia? Como assim, ele era diretor e não deixou instruções para os atores da peça? 

O último ato, incluía gângsters em cena, a máfia das flores como era conhecida na cidade. Atiravam para todo lado, ameaçavam de sequestro. Horas de negociação até a liberação do mocinho na alfândega. Vocês querem vê-lo antes da partida? Ele vai cumprimentar a todos que forem se despedir? Temos maquiadores, iluminadores, figurinistas, cenógrafos, todos especializados... tem certeza que não vão querer?
sim, certeza, apenas um aceno de longe, sem janelinha. Como poderia ele em cena sem sua batuta.

Levou consigo lembranças de seus gatos, como um faraó egípcio. Tinha o pêlo dos bichanos nas vestes, uma pequena cerâmica costurada à lá Artur Bispo do Rosário em seu bolso. Não permitiram que levasse líquidos, sabe como é, se não deixam no avião também não deixam no trem. Os vasilhames hoje em dia são perigosos...
Quando chegou na estação para sua despedida viu os amigos carinhosamente preparando o cenário, as luzes, as flores. Tanto amor ali, tanto carinho e tanta saudade. Só foi embora porque estava certo do reencontro um dia.

Na estação, na despedida, muitos se amontoavam. Mas ele já estava dentro do vagão e não ia mais fazer uma aparição. Deve ter se divertido ouvindo às especulações do motivo de sua ausência na própria despedida. 
Ele estava lá, esteve com todos e provavelmente acumulava personagens para as próximas histórias. Talvez um romance? Se bem que um volume com vários contos estava pronto ali à sua volta.

O irmão mais velho em certo momento desabafou irritado "ele furou a fila!"
As vozes que cantavam Amazing Grace preenchiam a plataforma da estação e ovacionado, como devem ser os artistas, ele partiu para uma caminhada até a colina onde fica seu terreninho. 
Tem vista, árvores, e aos domingos tem um pancadão pra animar a tarde. No momento da despedida até rojões soltaram.

E agora ele mora na colina, e canta e ri, e nós ficamos aqui na saudade.







Nov 10, 2015

das dores

demorei a escrever... demorei porque ainda ruminava os fatos, mas demorei também porque falar dessa dor tiraria do topo da lista aquele momento de alegria intensa da semana passada.
Mas não falar será mais complicado do que me abrir novamente aqui.
(parênteses introdutório) Estava vendo agora um vídeo sobre feminicídio, violência contra a mulher e me incomodou na fala das pesquisadoras entrevistadas as sentenças em que elas se distanciam, ou se excluem daquela população de que falam. Não são "elas, as outras mulheres" que tem medo, somo nós, todas nós. (fecha parêntesis)
Na semana passada, ainda sob efeito da água gelada do Inhotim e do reencontro de antigas paixões, recebemos notícias terríveis.
Havia quase duas semanas que num dos campi em que leciono as paredes estavam cobertas com cartazes de "desaparecida" e a foto de uma menina de 21 anos. Larissa, aluna nossa da Biomedicina havia sido vista pela última vez estacionando o carro na rodoviária de Extrema a caminho da universidade.
Na última terça feira, quando saí para o intervalo, todos os cartazes haviam sido recolhidos, e ela encontrada. Na verdade seu corpo. Amarrado, torturado, desfigurado e decomposto.
Segundo os noticiários, ela havia descoberto que seu namorado tinha um caso com um homem, que era também empregador dos dois (dela e dele, modelos da confecção) e por isso sua morte foi encomendada pelo dois. Sim, encomendada!
Pagaram mil reais para que ela fosse morta e se desse um sumiço em seu corpo. Morta com requintes de crueldade, disse a legista, ao analisar o que restava de seu corpo em avançado estado de decomposição.
Que merda de mundo é esse em que um homem acha que ser um assassino é melhor que assumir seu romance com outro homem?
Em que curva desse raciocínio atrofiado eles acharam que tinham que matá-la. Porque eles acharam que tinham o direito sobre a vida dela? Que merda!
Como que a vida dessa menina vale mil reais dividido entre duas pessoas? ou melhor, quem deu preço à vida dela?
Imagino a negociação, a barganha... cobro dois. só pago mil. quinhentos na entrada, quinhentos depois que apresentar provas do serviço.
Desta vez o caçador não levou o coração do cervo. Largou o corpo da princesa no bosque, sem anões mineradores, príncipes... sem que ela própria tivesse chance de fugir
Descobri depois de um tempo lecionando, que não me importa se aquela aluna e aquele aluno faz parte da minha lista de chamada, do meu diário, se faz parte da comunidade acadêmica, a responsabilidade que sinto por sua formação é igual. É claro que o convívio semanal gera relações de afeto mais profundas, mas aluno de um é aluno de todos...
Digo isso porque a Larissa não era minha aluna, mas era aluna de meus colegas, que sentirão sua falta na sala de aula, era amiga de meus alunos, que dividiam com ela os assentos no ônibus.
Também não era minha aluna a Tayná, mas sua morte trágica na sexta feira deixará grandes cicatrizes. Tayná seria minha aluna no próximo ano, e pelo que ouvi, seria das boas. Não tive tempo de conhecê-la.
Ninguém teve tempo de impedir o que aconteceu.
Ela avisou a um amigo por uma mensagem de voz "tem um caminhão vindo em minha direção, vou jogar meu carro" e fez.
Que dor tão insuportável era essa que a única saída que ela viu era bater de frente com um caminhão?
Fiquei completamente sem chão, sem saber o que fazer...
Fui dar a notícia terrível da morte da colega aos meus alunos e não consegui, caí num choro de lágrimas gordas, completamente desmontada, como aquele brinquedo da vaquinha de elástico que você aperta o fundo e ela fica mole.
Foram duas alunas numa mesma semana. Foram duas tragédias e o chão sumiu completamente.
A morte delas despertou lembranças que estavam bem enterradinhas. Zumbis que voltaram para assombrar um pouco os dias...
Ouvi uma colega comentando o caso da Larissa: "com que tipo de gente essas meninas andam? elas não sabem distinguir os caras?"
Não, e não são elas que não sabem, NÓS não sabemos.
Se foi só depois dos 21 que percebi o tamanho dos abusos a que estava sujeita naquele namoro que começou na adolescência, imagino que ela não teve nem tempo de perceber, de testar, de crescer com seus enganos. Arrancaram dela a chance de errar e aprender. Mas em que mundo a culpa dessa atrocidade é dela? Não é! A culpa não é dela! Como pode? Ela foi enganada, sequestrada, morta, jogada do barranco no meio da mata e alguém vem dizer que foi culpa dela por não saber com que estava metida? Foi isso mesmo que eu ouvi? Merda!
A história da Tayná trouxe um fantasma que há muito não visitava, o do suicídio anunciado, como forma de controlar a relação. Naquela história de abusos que vivi, um dos jeitos que ele encontrou para que eu não partisse era a ameaça do suicídio. Todas as vezes que tomei fôlego e coragem para me libertar daquela situação, que não era de amor, era de posse (mas eu só descobri isso tempos depois) fui recebida com choro de crocodilo e a ameça "não posso viver sem você. Se você me deixar eu me mato". E lá ia eu, cheia de culpa, carregando a responsabilidade da vida de uma pessoa nas costas, com o rabo entre as pernas, de volta para o abuso. Sem perceber que quem morria aos poucos era eu.
Em nenhum cenário, se por acaso ele realmente tivesse a intenção de morte, aquilo seria minha responsabilidade. Nós não somos responsáveis pela felicidade do outro. Nós podemos fazer parte dela, mas ela não está em nossas mãos.
Mas no meu caso, aquela era uma ferramenta de controle. Ele sabia que eu não gostava nem de pensar em carregar uma culpa dessa e usava isso como grade daquela prisão.
O caso da Tayná não teve aviso prévio. Teve ação. E as vidas partidas que ficaram pra trás.
E o assento vazio na sala de aula, na mesa de jantar...