Apr 11, 2016

alucinações do último ato

Completavam-se exatos 18 anos que havia comprado o terreninho no Morumbi, quando decidiu mudar-se pra lá definitivamente. Sua mãe e as irmãs já ocupavam os outros quartos. O pai estava em casa separada, mas pertinho dali.

Avisou ao irmão caçula no dia anterior. 
- Pra minha mãezinha já telegrafei, E já me cansei de tanto sofrer, Nesta madrugada estarei de partida, Pra terra querida que me viu nascer.
Pegou o trem no dia seguinte cantando com Judy Garland.




Acenando pela janelinha do trem conseguiu ver a confusão na estação que sua partida causava. Não que fosse novidade sua partida iminente, mas era difícil para os que estavam na plataforma vê-lo partir.

Escreveu seu último ato como escrevia suas peças e os mais recentes contos, com muito humor e aquela pitada de sarcasmo, humor negro e amarga honestidade (como disse um crítico sobre sua obra). 
Ria ao ver os amigos queridos e o irmão cuidando das burocracias da sua partida. 
Mas com que roupa ele vai? Essa mala é a que ele escolheria? Ele deixou alguma coisa preparada, disse como gostaria que acenássemos da estação? Alguma direção, coreografia? Como assim, ele era diretor e não deixou instruções para os atores da peça? 

O último ato, incluía gângsters em cena, a máfia das flores como era conhecida na cidade. Atiravam para todo lado, ameaçavam de sequestro. Horas de negociação até a liberação do mocinho na alfândega. Vocês querem vê-lo antes da partida? Ele vai cumprimentar a todos que forem se despedir? Temos maquiadores, iluminadores, figurinistas, cenógrafos, todos especializados... tem certeza que não vão querer?
sim, certeza, apenas um aceno de longe, sem janelinha. Como poderia ele em cena sem sua batuta.

Levou consigo lembranças de seus gatos, como um faraó egípcio. Tinha o pêlo dos bichanos nas vestes, uma pequena cerâmica costurada à lá Artur Bispo do Rosário em seu bolso. Não permitiram que levasse líquidos, sabe como é, se não deixam no avião também não deixam no trem. Os vasilhames hoje em dia são perigosos...
Quando chegou na estação para sua despedida viu os amigos carinhosamente preparando o cenário, as luzes, as flores. Tanto amor ali, tanto carinho e tanta saudade. Só foi embora porque estava certo do reencontro um dia.

Na estação, na despedida, muitos se amontoavam. Mas ele já estava dentro do vagão e não ia mais fazer uma aparição. Deve ter se divertido ouvindo às especulações do motivo de sua ausência na própria despedida. 
Ele estava lá, esteve com todos e provavelmente acumulava personagens para as próximas histórias. Talvez um romance? Se bem que um volume com vários contos estava pronto ali à sua volta.

O irmão mais velho em certo momento desabafou irritado "ele furou a fila!"
As vozes que cantavam Amazing Grace preenchiam a plataforma da estação e ovacionado, como devem ser os artistas, ele partiu para uma caminhada até a colina onde fica seu terreninho. 
Tem vista, árvores, e aos domingos tem um pancadão pra animar a tarde. No momento da despedida até rojões soltaram.

E agora ele mora na colina, e canta e ri, e nós ficamos aqui na saudade.