Ainda estamos oficialmente em isolamento social, a situação do contágio com o vírus da Covid-19 no Brasil está completamente descontrolada.
Os dados oficiais dão conta de que cerca de 1 pessoa morre a cada minuto no país em consequência da doença.
Mas tem gente que não acha isso relevante.
Nem preocupente.
Mas não é sobre isso que queria falar hoje, ou é. De certa maneira é.
As notícias desta semana são assustadoras em todos os sentidos, mas de longe a mais chocante e triste e devastadora é a da morte do menino Miguel.
Miguel não morreu de insuficiência respitarória aguda pelo Covid, ele morreu de insuficiência de humanidade aguda que acomete a ex-patroa de sua mãe.
A mãe do Miguel, a Mirtes, é trabalhadora doméstica lá em Recife. Trabalhava para uma família abastada, que mora numa dessas torres que fodem com a paisagem da cidade.
A mãe do Miguel não foi dispensada do trabalho para se proteger com sua família. O Miguel, com 5 anos, não tinha escola pra ir enquanto a mãe trabalhava, porque as escolas estão todas fechadas (como deria ser).
Nesse dia, não tinha mais ninguém em casa para cuidar do Miguel, e a Mirtes precisou levá-lo com ela ao trabalho.
Não é que ela trabalhasse num lugar perigoso para crianças, uma fábrica com produtos químicos, caldeiras, prensas ou coisa do gênero. Ela trabalhava na casa de uma família, cuidando também de outras crianças. Não era perigoso levar o Miguel.
Se bem que era...
Alguns causos por aí contam que a Mirtes, o Miguel e a vó dele tiveram Covid-19, porque nesse vai-e-vem do trabalho diário, em algum lugar ela se contaminou. Mas não investiguei, nem vou, porque é bem provável que seja verdade. Não vem ao caso agora.
A Mirtes e o Miguel são negros, e isso é bem importante nessa narrativa.
Digo o porquê: a maioria das trabalhadoras domésticas no Brasil são negras, e trabalham na casa de famílias brancas. Essa relação abusiva de trabalho vem desde os tempos que o povo negro era escravizado no Brasil. Essa é a relação de trabalho a que muitas mulheres negras são submetidas. É tão abusiva que a patroa não liberou a trabalhadora de suas atividades mesmo com o risco de contaminação por uma doença tão cruel, não continuaria pagando o salário da funcionária para ela "ficar em casa".
Acho que é aqui que entra a história de que estou sim falando da pandemia: São essas as pessoas que estão subordinadas a patrões que "flexibilizam" as normas do isolamento, e que "precisam trabalhar" para não passar fome. São mulheres, e são mulheres negras na maioria das vezes, que sustentam a família toda com esse trabalho, e que estão sujeitas ao abuso dos empregadores em situações como essa.
Mas o Miguel naquele dia foi com a mãe para o trabalho, e brincava com as outras crianças da casa. A mãe do Miguel precisou descer para levar o cachorro para passear (cachorro em apartamento precisa sair um pouquinho pra fazer seu xixizinho e cocozinho lá na calçada, fora do apartamento, algumas vezes por dia). O Miguel ficou no apartamento, com outras crianças e com pelo menos mais 2 adultos: a dona do apartamento, mãe das outras crianças e patroa da sua mãe, e uma moça que prestava serviço de manicure (que também não foi dispensada do trabalho com seus recebimentos mantidos).
Mas o Miguel tinha 5 anos, e como uma criança de 5 anos, ficou com aquele apertinho no coração de quando a mãe não está no campo de visão, e chorou.
Na minha santa inocência, imagino que qualquer pessoa ao ver uma criança de 5 anos chorar, ainda mais sabendo porque ela está chorando, senta com a criança para consolar. Conta uma história, conversa, prepara alguma coisa pra comer, faz o tempo passar até que a mãe chegue e a criança se acalme com sua volta.
Mas parece que na vida real nem sempre é assim, e às vezes aquelas figuras tenebrosas dos contos de fadas existem em carne e osso.
O que fez a mulher ao ver o menino chorar: levou o pequeno até o elevador do prédio, botou lá dentro e apertou um botão qualquer. Como um amigo escreveu "apertou o botão 'pra longe de mim'".
Mas em todo elevador tem aquela plaquinha de que crianças não podem andar desacompanhadas de um adulto! Todos! Todo mundo que mora em prédio já leu essa cláusula mais de uma vez.
Por que uma criança não pode andar sozinha de elevador?
Porque elas não entendem como funciona, não sabem ver onde o elevador parou, que andar, pra onde ir, como funcionam os botões, como chamar ajuda se algo der errado. O Miguel tinha 5 anos.
Mas se ela sabia que ele era criança, e que criança não sabe e não pode andar de elevador sozinha, por que essa mulhar botou o menino lá dentro?
O Miguel tinha 5 anos.
O que ela imaginou que ia acontecer?
O Miguel tinha 5 anos.
Provavelmente ela não imaginou que ia acontecer exatamente o que aconteceu, mas certamente dava pra imaginar que algo bem sério aconteceria.
O Miguel tinha 5 anos.
Mas por que essa mulhar botou o menino lá dentro?
Por causa da insuficência de humanidade aguda que a acomete.
E por causa do racismo que lhe corre nas veias.
Eu ainda não contei que ela é branca, né? Pois é, ela é branca. E como todos nós brancos no Brasil (sim, TODOS nós), o racismo nos é ensinado desde cedo, e se a gente não para para percebê-lo, e tentar desconstruir seus efeitos nas nossas ações, ele fica ali presente em todas as nossas atitudes diante de uma pessoa negra sem que a gente se sinta mal por isso.
O Miguel tinha 5 anos.
Se a criança não fosse o filho da empregada, talvez ela dona branca tivesse descido com ele para procurar a mãe, interfonado ao porteiro para chamar a mulher na rua, ligado para a mãe do menino ir buscá-lo.
Ela teria colocado os proprios filhos pequenos num elevador sem supervisão? Não acredito nessa hipótese.
Mas aqui a gente volta para a questão da construção do racismo no Brasil.
A criança negra no Brasil não é tão criança quanto a criança branca.
O menino de 5 anos negro é visto como um pequeno adulto, enquanto o menino de 5 anos branco é uma criança indefesa (como toda criança de 5 anos deveria ser vista!).
O menino de 5 anos pode ser colocado num elevador sozinho, porque ele certamente saberá o que fazer!
Assim como o menino negro de 14 anos é um "menor", enquanto o menino branco de 14 anos é um adolescente, e cada um deles carrega o peso e a leveza dessas palavras com ele.
O Miguel tinha 5 anos.
O Miguel saiu no 9º andar, depois de apertar todos os botões do elevador.
O Miguel caiu do 9º andar.
O Miguel morreu de racismo aos 5 anos.
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Pra pensar um pouco sobre essa construção do racismo no Brasil sugiro a leitura de "As Ilusões da Liberdade: a escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil", da Mariza Corrêa, e o "Espetáculo das raças: Cientistas, Instituições e questão racial no Brasil 1870-1930", da Lilia Moritz Acharcz.
Pra tentar ser menos racista, pra reconhecer o próprio racismo não pode faltar na leitura o "Pequeno manual Antirracista" da Djamila Ribeiro