Nov 10, 2015

das dores

demorei a escrever... demorei porque ainda ruminava os fatos, mas demorei também porque falar dessa dor tiraria do topo da lista aquele momento de alegria intensa da semana passada.
Mas não falar será mais complicado do que me abrir novamente aqui.
(parênteses introdutório) Estava vendo agora um vídeo sobre feminicídio, violência contra a mulher e me incomodou na fala das pesquisadoras entrevistadas as sentenças em que elas se distanciam, ou se excluem daquela população de que falam. Não são "elas, as outras mulheres" que tem medo, somo nós, todas nós. (fecha parêntesis)
Na semana passada, ainda sob efeito da água gelada do Inhotim e do reencontro de antigas paixões, recebemos notícias terríveis.
Havia quase duas semanas que num dos campi em que leciono as paredes estavam cobertas com cartazes de "desaparecida" e a foto de uma menina de 21 anos. Larissa, aluna nossa da Biomedicina havia sido vista pela última vez estacionando o carro na rodoviária de Extrema a caminho da universidade.
Na última terça feira, quando saí para o intervalo, todos os cartazes haviam sido recolhidos, e ela encontrada. Na verdade seu corpo. Amarrado, torturado, desfigurado e decomposto.
Segundo os noticiários, ela havia descoberto que seu namorado tinha um caso com um homem, que era também empregador dos dois (dela e dele, modelos da confecção) e por isso sua morte foi encomendada pelo dois. Sim, encomendada!
Pagaram mil reais para que ela fosse morta e se desse um sumiço em seu corpo. Morta com requintes de crueldade, disse a legista, ao analisar o que restava de seu corpo em avançado estado de decomposição.
Que merda de mundo é esse em que um homem acha que ser um assassino é melhor que assumir seu romance com outro homem?
Em que curva desse raciocínio atrofiado eles acharam que tinham que matá-la. Porque eles acharam que tinham o direito sobre a vida dela? Que merda!
Como que a vida dessa menina vale mil reais dividido entre duas pessoas? ou melhor, quem deu preço à vida dela?
Imagino a negociação, a barganha... cobro dois. só pago mil. quinhentos na entrada, quinhentos depois que apresentar provas do serviço.
Desta vez o caçador não levou o coração do cervo. Largou o corpo da princesa no bosque, sem anões mineradores, príncipes... sem que ela própria tivesse chance de fugir
Descobri depois de um tempo lecionando, que não me importa se aquela aluna e aquele aluno faz parte da minha lista de chamada, do meu diário, se faz parte da comunidade acadêmica, a responsabilidade que sinto por sua formação é igual. É claro que o convívio semanal gera relações de afeto mais profundas, mas aluno de um é aluno de todos...
Digo isso porque a Larissa não era minha aluna, mas era aluna de meus colegas, que sentirão sua falta na sala de aula, era amiga de meus alunos, que dividiam com ela os assentos no ônibus.
Também não era minha aluna a Tayná, mas sua morte trágica na sexta feira deixará grandes cicatrizes. Tayná seria minha aluna no próximo ano, e pelo que ouvi, seria das boas. Não tive tempo de conhecê-la.
Ninguém teve tempo de impedir o que aconteceu.
Ela avisou a um amigo por uma mensagem de voz "tem um caminhão vindo em minha direção, vou jogar meu carro" e fez.
Que dor tão insuportável era essa que a única saída que ela viu era bater de frente com um caminhão?
Fiquei completamente sem chão, sem saber o que fazer...
Fui dar a notícia terrível da morte da colega aos meus alunos e não consegui, caí num choro de lágrimas gordas, completamente desmontada, como aquele brinquedo da vaquinha de elástico que você aperta o fundo e ela fica mole.
Foram duas alunas numa mesma semana. Foram duas tragédias e o chão sumiu completamente.
A morte delas despertou lembranças que estavam bem enterradinhas. Zumbis que voltaram para assombrar um pouco os dias...
Ouvi uma colega comentando o caso da Larissa: "com que tipo de gente essas meninas andam? elas não sabem distinguir os caras?"
Não, e não são elas que não sabem, NÓS não sabemos.
Se foi só depois dos 21 que percebi o tamanho dos abusos a que estava sujeita naquele namoro que começou na adolescência, imagino que ela não teve nem tempo de perceber, de testar, de crescer com seus enganos. Arrancaram dela a chance de errar e aprender. Mas em que mundo a culpa dessa atrocidade é dela? Não é! A culpa não é dela! Como pode? Ela foi enganada, sequestrada, morta, jogada do barranco no meio da mata e alguém vem dizer que foi culpa dela por não saber com que estava metida? Foi isso mesmo que eu ouvi? Merda!
A história da Tayná trouxe um fantasma que há muito não visitava, o do suicídio anunciado, como forma de controlar a relação. Naquela história de abusos que vivi, um dos jeitos que ele encontrou para que eu não partisse era a ameaça do suicídio. Todas as vezes que tomei fôlego e coragem para me libertar daquela situação, que não era de amor, era de posse (mas eu só descobri isso tempos depois) fui recebida com choro de crocodilo e a ameça "não posso viver sem você. Se você me deixar eu me mato". E lá ia eu, cheia de culpa, carregando a responsabilidade da vida de uma pessoa nas costas, com o rabo entre as pernas, de volta para o abuso. Sem perceber que quem morria aos poucos era eu.
Em nenhum cenário, se por acaso ele realmente tivesse a intenção de morte, aquilo seria minha responsabilidade. Nós não somos responsáveis pela felicidade do outro. Nós podemos fazer parte dela, mas ela não está em nossas mãos.
Mas no meu caso, aquela era uma ferramenta de controle. Ele sabia que eu não gostava nem de pensar em carregar uma culpa dessa e usava isso como grade daquela prisão.
O caso da Tayná não teve aviso prévio. Teve ação. E as vidas partidas que ficaram pra trás.
E o assento vazio na sala de aula, na mesa de jantar...


1 comment:

Mila Reily said...

Lalau,
Tá difícil a vida né? já ouvi gente dizer que era covardia tirar a própria vida, nunca concordei com isso, acho de muita coragem conseguir fazer isso... penso o tamanho do sofrimento de uma pessoa para essa ser a melhor alternativa... já me falaram que era egoísmo tirar a própria vida, que a pessoa não pensou nos amigos, não pensou na família, nos outros que ficariam tristes com a sua morte... não acho que seja assim, talvez egoísmo seja o contrário, querer o outro vivo ali, sofrendo de uma dor que ele não aguenta, só porque a gente não sabe ligar com a morte... eu talvez seja curiosa demais para me matar, curiosa com o que a vida me reserva, curiosa com o 'fim do filme'... não conseguiria sair da vida no meio da história, sem descobrir as reviravoltas que esperam por mim nos proximos minutos, capítulos, ou seja lá como a vida é contada...

SE MATAR EU ENTENDO, MAS MATAR OUTRA PESSOA, COMO SE ELA FOSSE UM OBJETO QUE ESTÁ ATRAPALHANDO O SEU CAMINHO, ISSO EU NÃO ENTENDO...