Nov 3, 2015

da relatividade do tempo

A relatividade de tempo e espaço nunca fizeram tanto sentido como nestes dez dias das últimas setenta e duas horas.
Teve o dia em que viajamos a madrugada toda, que deu às quatro horas de sono o mesmo poder restaurador de uma noite inteira. E nele roteirizamos nossas aventuras.
E aquele dia em que chegamos e andamos pela cidade, fazendo o reconhecimento da nossa nova casa, cheirando cada cantinho, sentido o sol por cada fresta. Sonhando com o carinho que as edificações no nosso caminho pediam tanto...
Teve também aquele dia em que passeamos pela lagoa reencontrando amigos de longa data, amigos que conhecemos tanto sem nunca termos nos visto antes. E todas as cores e todas as flores estavam lá pra nos receber, assanhadas. E nos encontramos do jeitinho que fantasiávamos. E trinta e oito corações batendo acelerados, ouvidos atentos, olhares curiosos e as pernas cansadas. Os dois quilômetros transformados em cinco e as curvas azuis com sabor de sorvete no final.
Mas o que coroou aquele dia foram as rodas das crianças dançando.
Também teve aquele dia em que à noite as pessoas andavam fantasiadas e o dj procurava motivos pra ir embora (mas essa parte eu já não vi, me contaram).
Num dos dias fomos guiados por um mundo de fantasia, de cores, formas, cheiros, ventos e sensações que ainda não conhecíamos. E o celacanto provocou maremotos nos olhos e corações. Aquele dia terminou no reflexo de Narciso nas bolas prateadas oferecidas por Yayoi e na expansão ao infinito dos quarenta horizontes. Mas foi o som dos vinte e nove infinitos que fizeram meu coração bater quentinho.
No outro dia nos perdemos nesse mundo da fantasia. Passamos por aquele mundo em que dia vira noite e noite vira dia, que aquilo que está ao sol é escuro e o subterrâneo é claro (Marco Polo deve ter relatado a Kublai Khan sua visita a este lugar).
Cosmococonautas descobrimos a gruta da oficina e nos perdemos numa deliciosa viagem para finalmente nos encontramos na água gelada de fazer gargalhadas do rio que passava debaixo da gruta. E no formigamento do corpo, a pulsação de todas as veias e artérias, e o batuque do coração no ouvido, a respiração quente, mais quente agora com o corpo gelado. E todos os problemas que desapareceram, congelados na água, ficaram sem importância.
E o barato da água ficou conosco pra sempre...
Refeitos e inteiros curtimos aquele dia em que a noite não tinha fim, a noite dupla. 
Aquela em que o alinhamento dos planetas provocou um encontro de almas como nunca antes visto. E andamos pela noite quente, donos da noite e das ruas. E cantamos com todo o ar de nossos pulmões, e dançamos até os sapatos aprenderem os passos e dançarem sozinhos. E cantamos mais, deixando em evidência o amor ao chocolate. E a voz acabou. E sem voz, voltamos pra casa, mesmo que a vontade fosse de que a noite não tivesse fim.
E no penúltimo dia, de coração partido, nos despedimos com calma da nossa casa, guardamos as lembranças na mala, o sabor doce.
No último dia, voltando pra casa o céu chorava de saudade, e despedimo-nos entre lágrimas, palmas e Manoel de Barros.




Tentei montar com aquele meu amigo que tem um olhar descomparado, uma Oficina de Desregular a Natureza. Mas faltou dinheiro na hora para a gente alugar um espaço. Ele propôs que montássemos por primeiro a Oficina em alguma gruta. Por toda parte existia gruta, ele disse. E por de logo achamos uma na beira da estrada. Ponho por caso que até foi sorte nossa. Pois que debaixo da gruta passava um rio. O que de melhor houvesse para uma Oficina de Desregular Natureza! Por de logo fizemos o primeiro trabalho. Era o Besouro de olhar ajoelhado. Botaríamos esse Besouro no canto mais nobre da gruta. Mas a gruta não tinha canto mais nobre. Logo apareceu um lírio pensativo de sol. De seguida o mesmo lírio pensativo de chão. Pensamos que sendo o lírio um bem da natureza prezado por Cristo resolvemos dar o nome ao trabalho de Lírio pensativo de Deus. Ficou sendo. Logo fizemos a Borboleta beata. E depois fizemos Uma idéia de roupa rasgada de bunda. E A fivela de prender silêncios. Depois elaboramos A canção para a lata defunta. E ainda a seguir: O parafuso de veludo, O prego que farfalha, O alicate cremoso. E por último aproveitamos para imitar Picasso com A moça com o olho no centro da testa. Picasso desregulava a natureza, tentamos imitá-lo. Modéstia à parte.
(Oficina. Memórias Inventadas, a segunda infância. Manoel de Barros)

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