Eu dificilmente leio o caderno de esportes da Folha. A não ser quando tem notícias de aberturas das Olimpíadas ou grandes construções de complexos desportivos.
Foi esse o caso hoje (25/11/2011).
A manchete “Cota para deficiente na Copa-2014 gera disputa” ganhou minha atenção e fui lá procurar saber o que isso significava.
Ao que tudo indica em nenhum dos estádios projetados para a Copa de 2014 a cota exigida pelo Decreto Federal 5.296 de 2004 para assentos reservados a pessoas com deficiência e dificuldade de locomoção foi atingida.
Grande chance a nossa de refazer os antigos estádios, modernizar, deixar mais confortável para o público e assim atrair mais gente para as partidas, mesmo após o final da Copa. Aumentar tudo, trocar a iluminação, refazer os banheiros, as lanchonetes, as coberturas. Que delícia de oportunidade tiveram os arquitetos que fizeram esses projetos.
Pena que eles seguiram a legislação errada.
A Lei Federal 10.098 de 2000 e o Decreto Federal 5.296 de 2004, junto com a norma técnica NBR 9050/2004 da ABNT regem nossos espaços construídos, principalmente os de uso coletivo, no que diz respeito à equiparação de oportunidades para as pessoas com deficiência e mobilidade reduzida. O texto da legislação brasileira é muito feliz ao incluir idosos e pessoas com dificuldade de movimentar-se, permanente ou temporariamente, como gestantes, pessoas acidentadas ou em tratamento de doenças graves. As cotas dos assentos são destinadas a todas elas. A elas e a seus acompanhantes, porque, convenhamos, ir ao cinema sozinho nem sempre é bom. Ir ao estádio torcer é muito mais gostoso em grupo. E as pessoas nem sempre tem autonomia para ficarem sozinhas.
A legislação está aí para garantir que TODOS os brasileiros tenham as mesmas oportunidades de cultura, educação, lazer... E as cotas se fazem necessárias neste momento.
Num mundo mais altruísta as cotas não seriam necessárias, o acesso seria universal, e desde o primeiro pensamento para um traço de projeto todas as pessoas com todas as habilidades seriam incluídas.
Mas nosso mundo ainda não é assim, e a maneira de garantir que todos possam assistir a um jogo de futebol num dos maiores eventos desportivos que nosso país já sediou, é exigir a aplicação das cotas nos projetos arquitetônicos.
Fico feliz em saber que a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República está atenta e cobrando para que sejam respeitadas as normas brasileiras sobre as internacionais.
Fico triste em ver que meus colegas arquitetos responsáveis por estes projetos não se preocuparam com esta parcela da população.
Tantas vezes nos comparamos aos países europeus, aos norte-americanos, dizendo que nossas leis não são suficientes, não nos protegem, não punem os culpados, e quando finalmente temos uma lei mais humana que as internacionais, que se preocupa mais com os direitos do cidadão, achamos que ela não precisa ser cumprida em sua totalidade.
No caso dos estádios, o exemplo usado na reportagem da Folha foi o novo estádio do Corinthians, em Itaquera, São Paulo. O estádio deve abrigar a abertura da Copa, ou seja, um estádio para 70mil pessoas. Segundo a norma brasileira deveriam ter sido previstos 2.800 assentos para pessoas com deficiência e mobilidade reduzida, sendo 1.400 para usuários de cadeiras de rodas e outros 1.400 para pessoas com mobilidade reduzida, incluídos neste grupo deficientes visuais, idosos, gestantes, obesos, pessoas com dificuldades temporárias de se movimentar.
Foram previstos 300 lugares.
Convenhamos, em 70mil pessoas, só 300 se encaixam na descrição acima? Acho difícil de acreditar.
Quando um arquiteto é contratado para um projeto ele deve recolher uma Assinatura de Responsabilidade Técnica, que é um documento oficial no qual estão os principais dados sobre o projeto, a metragem projetada, o tipo de edificação, o tipo de contratação, quanto ele recebeu pelo projeto. Ao final deste documento, logo acima da assinatura do profissional está escrito: “Declaro ser de minha responsabilidade técnica, dentro das atividades assumidas nesta ART e nos termos aqui anotados, o atendimento às regras de acessibilidade previstas nas Normas Técnicas de Acessibilidade da ABNT e na legislação específica, em especial o Decreto nº 5.296/2004, para os projetos de construção, reforma ou ampliação de edificações de uso público ou coletivo, nos espaços urbanos ou em mudança de destinação (usos) para estes fins”.
Ou seja, não importa que o contratante do projeto seja a FIFA, um organismo internacional, e que os manuais da FIFA exijam apenas os 300 lugares reservados a pessoas com deficiência, se o projeto está sendo realizado no Brasil, a lei brasileira é soberana e deve ser respeitada.
Espero que meus colegas tenham bastante criatividade para resolver essa situação dos projetos dos estádios. E que a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República tenha o pulso firme para exigir uma solução adequada.
Espero que no futuro, nos próximos projetos que realizarem, tenham em mente os princípios do Desenho Universal (utilização equiparável, flexível, simples, tolerante ao erro, que informe de maneira eficaz suas formas de uso, que possuam tamanhos e espaços que viabilizem o uso e exijam pouco esforço físico) desde o princípio, e não apenas como checklist de elementos ao final do projeto.
Acessibilidade não é só colocar rampa, elevador, corrimão, piso podotátil e um banheiro grande num equipamento de uso coletivo, é permitir que todas as pessoas, independente de suas habilidades, possam, com conforto e dignidade, participar das atividades realizadas naquele espaço.